sábado, 9 de janeiro de 2021

Edward O. Wilson

 



As origens das artes criativas 


Por mais ricas e ilimitadas que possam parecer, as artes criativas são filtradas pelos canais biológicos estreitos da cognição humana. Nosso mundo sensorial, o que podemos saber sem a ajuda de instrumentos sobre a realidade externa aos corpos, é lamentavelmente pequeno. [...] Os seres humanos, junto com os macacos antropóides e aves, estão entre as raras formas de vida que são basicamente audiovisuais e, portanto, fracos em paladar e olfato. Somos idiotas comparados com cascavéis e sabujos. Nossa pouca capacidade de cheirar e sentir gosto se reflete no tamanho pequeno de nosso vocabulário quimiossensorial, forçando-nos quase sempre a recorrer a símiles e outras formas de metáforas. Um vinho possui um buquê delicado, dizemos, seu sabor é encorpado e um tanto frutado, Uma fragância se assemelha à da rosa, do pinheiro ou da terra molhada pela chuva. Somos forçados a cambalear por nossas vidas quimicamente deficientes em uma biosfera quimiossensonrial, dependendo do som e da visão que evoluíram basicamente para a vida nas árvores. 


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Podemos obter vislumbres da origem e da natureza do julgamento estético. Por exemplo, o monitoramento neurobiológico, em particular medições do amortecimento das ondas alfa durante as percepções de desenhos abstratos, mostrou que o cérebro é mais excitado por padrões com cerca de 20% de redundância de elementos, ou seja, mais ou menos a complexidade encontrada em um labirinto simples, ou em duas voltas de uma espiral logarítmica, ou em uma cruz assimétrica. [...] A origem do princípio pode ser o fato de que esse grau de complexidade é o máximo que o cérebro consegue processar de um só relance, assim como sere é o número máximo de objetos que podem ser contados de um só relance. 


        Em outra esfera das artes visuais existe a biofilia, a ligação inata que as pessoas buscam com outros organismos, especialmente com o mundo natural vivo. Estudos mostraram que, com liberdade para escolher o ambiente de suas casas ou escritórios, pessoas em diferente culturas gravitam em direção a um ambiente que combine três aspetos. Elas querem estar no alto olhando para baixo, preferem terrenos abertos como da savana com árvores e bosques espalhados e querem estar próximos de um corpo d’água como um rio, lago ou oceano. [...] As pessoas, em outras palavras, preferem viver naqueles ambientes onde nossa especie evoluiu por milhões de anos na África. Instintivamente gravitam rumo à savana e à floresta transicional, olhando, a uma distância segura, para fontes confiáveis de alimento e água. [...] Todas as espécies móveis são guiadas por instintos que as conduzem a habitas onde têm uma chance máxima de sobrevivência e reprodução. 


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Existem agora indícios substanciais de que o comportamento social humano surgiu geneticamente por evolução multinível. Se essa interpretação for correta, e um número crescente de biólogos e antropólogos evolutivos acredita que seja, podemos esperar um conflito constante entre componentes do comportamento favorecidos pela seleção individual e aqueles favorecidos pela seleção de grupo. A seleção no nível individual tende a criar competitividade e comportamento egoísta entre os membros do grupo - em torno de status, acasalamento e acesso aos recursos. Já a seleção entre grupos tende a criar um comportamento desprendido, expresso na maior generosidade e altruísmo, os quais por sua vez promovem uma maior coesão e aumentam a força do grupo como um todo. 


        Um resultado inevitável das forças mutuamente contrabalançantes da seleção multinível é a ambiguidade permanente na mente humana individual, levando a inúmeros cenários na forma como as pessoas acasalam, amam, se associam, traem, compartilham, sacrificam, roubam, enganam, se redimem, punem, imploram e decidem. A luta endêmica ao cérebro de cada pessoa, espalhada na vasta superestrutura da evolução cultural, é o manancial das humanidades. Um Shakespeare no mundo das formigas, livre de tal guerra entre honra e traição, e acorrentado pelos comandos rígidos do instinto a um repertório minúsculo de sentimentos, seria capaz de escrever apenas um drama de triunfo e outro de tragédia. As pessoas comuns, no entanto, podem inventar uma infinidade dessas histórias e compor uma sinfonia infinita de ambivalência e estados de espírito. 


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As artes criativas se tronaram possíveis como um avanço evolutivo quando os seres humanos desenvolveram a capacidade do pensamento abstrato. A mente humana pôde então formar um modelo de uma forma, ou de uma espécie de objeto, ou de uma ação, e transmitir uma representação concreta do conceito para outra mente. Assim surgiu a linguagem verdadeira, produtiva, formada de palavras e símbolos arbitrários A linguagem foi seguindo pela arte virtual, pela música, pela dança e por cerimônias e rituais da religião. [...] Somos tentados a pensar que o processamento neural da linguagem serviu de pré-adaptação para a música, a qual, uma vez surgida, mostrou-se suficientemente vantajosa para adquirir sua própria predisposição genética


Trecho do livro A conquista social da Terra

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