terça-feira, 10 de julho de 2018

António R. Damásio




A estranha ordem das coisas 
as origens biológicas dos sentimentos e da cultura

Princípio

A medicina não nasceu como um esporte intelectual destinado a exercitar o raciocínio com um quebra-cabeça diagnóstico ou um mistério fisiológico. Ela surgiu como uma consequência de sentimentos específicos de pacientes e dos primeiros médicos: a compaixão gerada pela empatia. Assim também, a busca do lucro é impulsionada por diversos anseios – pelo desejo de progredir, de ter prestígio, pela cobiça –, e tudo isso são sentimentos.

A ideia, em essência, é que a atividade cultural começa e permanece profundamente alicerçada em sentimentos. Precisamos reconhecer a interação favorável e desfavorável dos sentimentos com o raciocínio se quisermos compreender os conflitos e contradições da condição humana.

Como os seres humanos vieram a ser, ao mesmo tempo, sofredores, mendigos, celebradores da alegria, filantropos, artistas, cientistas, santos e criminosos, senhores benevolentes do planeta e monstros decididos a destruí-lo? A resposta a essa questão certamente demanda contribuições de historiadores e sociólogos, bem como de artistas, cuja sensibilidade costuma intuir os padrões ocultos do drama humano; além disso, requer contribuições de vários ramos da biologia.

A verdadeira ordem do surgimento das faculdades e estruturas biológicas que descobri é demasiadamente estranha e viola as expectativas tradicionais.

Quando um organismo vivo age de modo inteligente e vencedor em um cenário social, supomos que seu comportamento decorre de antevisão, deliberação e complexidade, contando com a ajuda de um sistema nervoso. Agora, porém, está claro que comportamentos assim podem surgir com base no singelo equipamento de uma única célula: uma bactéria, nos primórdios da biosfera. “Estranha” é uma palavra fraca demais para descrever essa realidade.

Podemos conceber uma explicação que comece a admitir as descobertas contrárias à intuição.  Ela se baseia nos mecanismos da própria vida e nas condições de sua regulação: uma coleção de fenômenos geralmente designada pela palavra “homeostase”. Os sentimentos são expressões mentais da homeostase enquanto esta, atuando sob o manto dos sentimentos, é a linha funcional que liga as primeiras formas de vida à extraordinária parceria de corpos e sistemas nervosos. Essa associação é responsável pelo surgimento de mentes dotadas de consciência e sentimentos, e essas mentes, por sua vez, são responsáveis por aquilo que é mais distintivo no ser humano: cultura e civilização. Os sentimentos são o cerne do livro, mas extraem seu poder da homeostase.

Associar as culturas a sentimentos e homeostase reforça suas ligações com a natureza e aprofunda a humanização do processo cultural. Sentimentos e mentes culturais criativas são frutos de um longo processo no qual a seleção genética guiada pela homeostase teve papel de destaque. A associação opõe-se à crescente dissociação de ideias, práticas e objetos culturais dos processos da vida.

Não estou reduzindo fenômenos culturais às suas raízes biológicas, nem tentando explicar através da ciência todos os aspectos do processo cultural. [...] Muitas discussões sobre a formação de culturas engalfinham-se em torno de duas interpretações conflitantes: uma na qual o comportamento humano resulta de fenômenos culturais autônomos e outra na qual o comportamento humano é consequência da seleção natural dirigida por genes. Contudo, não é necessário proferir uma interpretação à outra. Em grande medida, o comportamento humano resulta de ambas as influências, em proporções variadas. Curiosamente, descobrir as raízes de culturas humanas na biologia não humana não diminui nem um pouco a condição excepcional dos seres humanos. Tal condição deriva da importância única do sofrimento e da prosperidade no contexto das nossas lembranças do passado e das memórias que construímos a respeito do futuro.

Os seres humanos, em sua necessidade de lidar com o coração em conflito, em seu desejo de conciliar as contradições advindas do sofrimento, do medo e da raiva com a busca de bem-estar, entregam-se a conjecturas e deslumbramentos, descobrindo, assim, como fazer música, dança, pintura, literatura. Continuaram seus esforços criando os épicos; muitos deles, belos, alguns batidos – que atendem por nomes como crença religiosa, investigação filosófica e governança política. Do berço ao túmulo, esses foram alguns dos modos pelos quais a mente cultural enfrentou o drama humano.




Fotografia: James Nachtwey

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