segunda-feira, 2 de julho de 2018

Harold Bloom



Por que ler Tchekhov?
Turgenev, Tchekhov e Hemingway têm um componente comum, um aparente distanciamento que, examinado atentamente, demostra ser algo peculiar. Afinidade com a paisagem e com a figura humana é central nos três autores.
Até mesmo os primeiros contos escritos por Tchekhov exibem delicadeza formal e a sombria reflexão que o tornam o artista imprescindível da “vida não vivida”.
Tchekhov dizia ser preciso escrever de modo que o leitor não precisasse das explicações do autor. As atitudes, os diálogos e as reflexões dos personagens haviam de bastar.
A esperança e a alegria, por mais irracionais que sejam, são mais fortes do que o desespero, embora, ao final, mais perniciosas. Leio “O beijo” e repito comigo mesmo conhecerás a verdade e a verdade te levará ao desespero. O problema é que esse gênio sombrio insiste em ser alegre.

Em Reminiscências, de Gorki, que assinala: “Parece-me que na presença de Tchekhov todos sentiam um desejo inconsciente de serem menos afetados, mais verdadeiros, mais eles mesmos”.  [...] A meu ver, esse desejo é um fenômeno de ordem estética, não moral, pois Tchekhov tem a sabedoria dos grandes escritores, e ensina, implicitamente, que a literatura é uma forma de fazer o bem. Shakespeare e Beckett oferecem-me o mesmo ensinamento.

“O estudante” é, ao mesmo tempo, de extrema simplicidade e belíssima concepção. [...] De súbito, o estudante sente grande alegria por acreditar que verdade e beleza sobrevivem nessa corrente que une passado e presente. [...] O leitor é levado a refletir sobre a sutil transição observada na alegria do estudante, que vai da constatação do elo existe entre verdade e beleza, no passado e no presente, à expectativa de que um jovem de vinte e dois anos, quanto à possibilidade de realização pessoal. [...] Tchekhov, o dramaturgo-psicólogo mais perspicaz depois de Shakespeare, escreve aqui um sombrio conto lírico, versado sobre sofrimento e transformação. Tudo em “O estudante”, exceto o que se passa na mente do protagonista, é absolutamente pequeno. Talvez a transformação irracional de uma alegria impessoal e de esperança pessoal, em meio ao frio e à necessidade, e, ainda, as lágrimas da traição tenham comovido Tchekhov.

“A dama e o cachorrinho”. O conto reverbera durante muito tempo. Gurov e Ana transformam-se ao longo do relato, mas a mudança não é, necessariamente, para melhor. Nada que um possa fazer pelo outro trará qualquer redenção; o que, então, resgata a história dos dois da rotina entediante? Até que ponto a história dos dois difere de outras tantas malfadadas histórias de adultério?

Não seria devido ao interesse que os dois personagens suscitam, como poderá constatar qualquer leitor; Gurov e Ana não têm nada de extraordinário. Ele é como qualquer homem mulherengo, ela, como qualquer mulher chorosa. A arte de Tchekhov jamais é tão enigmática quanto nesse conto, em que seu talento é, simultaneamente, visível e indefinível. Não resta dúvida, Ana está apaixonada, embora Gurov não seja digno de amor.  Jamais sabemos como avaliar a melancólica Ana. O que se passa entre os amantes é apresentado por Tchekhov com tamanho distanciamento que, embora não nos falte informação, falta-nos capacidade de discernir e julgar. O conto é de um universalismo estranho e lacônico.

Em Trigorin, na peça, A gaivota, Tchekhov parodia a si mesmo apaixonado; a meu ver, Gurov, é autoparódia ainda mais ousada. Não simpatizamos com Gurov, e bem gostaríamos de ver Ana parar de chorar, mas não temos como descartar a história dos dois, pois é a nossa também.
Referindo-se a Tchekhov, Gorki afirma: “Ele era capaz de revelar o humor trágico inerente à banalidade”. A asserção pode parecer ingênua, mas o grande poder de Tchekhov é causar, no leitor, a impressão de estar, finalmente, diante da verdade sobre a constante mescla de sofrimento banal e humor trágico que caracteriza a existência humana. Shakespeare foi, para Tchekhov (e para todos nós), a autoridade máxima em humor trágico, mas o banal inexiste em Shakespeare, mesmo quando compõe paródia ou farsa. 

Fotografia: Henri Cartier-Bresson

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